(Transcrição integral da Memoria sobre o Pinhal Nacional de Leiria, dos Annaes maritimos e coloniaes de 1843.)
MEMORIA
SOBRE
O PINHAL NACIONAL DE LEIRIA
SUAS MADEIRAS F PRODUCTOS REZINOSOS.
Offerecida á Associação Maritima e Colonial de Lisboa, pelos Socios autores da mesma, os Srs. Francisco Maria Pereira da Silva, e Caetano Maria Batalha.
Anno de 1843.
Nomeados em 1839 para levantar as plantas das diversas mattas nacionaes, principiámos o desempenho desta commissão pela planta ou carta topographica do pinhal nacional de Leiria e seus arredores.
Sendo esta a principal matta de Portugal, e que pela sua organisação e abundancia de suas madeiras, fornece quasi exclusivamente os nossos Arsenaes de mar e terra, fizemos quanto estava ao nosso alcance, por entrar no conhecimento de todos os objectos que lhe diziam respeito; tanto pela maneira como esta matta se acha ligada com a Repartição de Marinha, como pela pouca noticia que della ha; sendo seguramente hoje a primeira riqueza nacional, e que muito convem conhecer pelas vantagens que ainda oferece ao Estado.
Tendo neste sentido obtido algum cabedal, foram dois os motivos que depois nos incitaram a fazer a presente memoria:
- Acompanhar com esclarecimentos locaes a carta totopographica do pinhal nacional de Leiria, que ha pouco levantámos, e que juntamos reduzida.
- Apresentar todos os factos e dados necessarios que possam servir de base a quaesquer melhoramentos que se julguem necessarios a esta vasta e rica matta, com especialidade no bom aproveitamento de todos os seus productos.
É este trabalho o resultado de muitas investigações e pesquizas que nos foi forçoso fazer, por não encontrarmos cousa alguma escripta a tal respeito; e a não ser a coadjuvação e copiosos esclarecimentos que obtivemos de todos os dignos em pregados da Administração geral das mattas, que para isto se prestaram com a melhor vontade, debalde nos cansariamos.
Se não preenchemos completamente o nosso fim, ao menos damos o primeiro passo, mostrando uma fonte de riqueza nacional da maior importancia para a nossa marinha.
I.
Historia e descripção do pinhal nacional de Leiria.
O pinhal nacional a que chamam de Leiria, posto que esteja duas legoas ao SO. desta cidade, deve a sua creação e regimento, como matta do Estado, a ElRei D. Diniz⁽¹⁾. Este previdente Monarcha, tendo em vistas tanto o engrandecimento da nossa marinha de guerra, que a esse tempo já se distinguia em assignalados feitos d’armas contra os Sarracenos, obtendo reconhecidas vantagens para a Corôa Portugueza; como o beneficiar a agricultura, seu extremoso objecto; mandou fazer naquelle local vastas sementeiras de pinheiros, afim de impedir tambem que as arêas moveis da costa do Oceano, arrojadas pelos ventos do mar, continuassem a innundar os terrenos circumvisinhos, esterilisando ferteis campinas, e submergindo até povoações inteiras, como acontece na Africa, onde nem vestigios já existem de opulentas cidades; e proximo ao mesmo pinhal de Leiria encontra-se um destes exemplos na antiga villa de Paredes, junto ao valle do mesmo nome, que sendo ainda no seculo passado bastantemente povoada, hoje se acha inteiramente deshabitada, e reduzida a um montão de arêas.
⁽¹⁾ Ha bastante incerteza sobre a época da fundação deste pinhal; e querem alguns que fosse anterior a ElRei D. Diniz, datando-a outros de D. Sancho, pai deste Monarcha. Todavia, o nosso sabio Brotero e outros muitos autores de consideração a referem a D. Diniz. O que parece fóra de duvida, é que foi no seu reinado que se fizeram as grandes sementeiras, e que se considerou então toda aquella extensão d’arêas como matta da Corôa , dando-se-lhe um regulamento para este fim.
Analysando ainda hoje o terreno em toda a superficie do pinhal de Leiria, se conhece, pela sua configuração e qualidade, essa immensidade de dunas que então se afastavam mais de uma legoa da costa do mar.
Até á época do venturoso reinado d’ElRei D. Manoel se conservou este pinhal em grande prosperidade, e a elle deve Portugal uma boa parte da sua gloria maritima, pela abundancia de madeiras que então fornecia, e com que se construiram tão numerosas frotas que, sahindo do Téjo, percorriam os mares até ás regiões mais longinquas, infundindo em toda a parte respeito e admiração.
As muitas e ricas madeiras que obtivemos com a descoberta do Brasil, a par dos acontecimentos politicos, que depois tiveram logar neste reino, fizeram com que pouco a pouco fossemos desprezando o nosso pinhal de Leiria, a ponto de ficar reduzido a um completo abandono, não tirando o Estado fructo algum d’uma tão grande riqueza nacional.
Foi no tempo do incansavel Martinho de Mello e Castro, Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Marinha e Ultramar, que o pinhal de Leiria tomou um novo aspecto; é desta época em diante que nós descreveremos a sua historia, visto não podermos colher dados para a trazer de mais longe. Em 1790 este habil e zeloso Ministro, tendo visitado todo o pinhal, e conhecido de perto os abusos que alli existiam com o antigo regimen, tratou d’uma reforma em todos os ramos da sua administração.
Principiou por fazer abolir o regimento das Superintendencias e dos Couteiros, por não preencher o fim a que se propunha: os Superintendentes eram pessoas que olhavam para este logar como um patrimonio ou beneficio simples, e residiam constantemente na cidade de Leiria; por isso, estando a duas legoas do pinhal, pouco podiam fazer para a sua boa administração e fiscalisação, e davam amplos poderes para este fim aos Couteiros. Estes Couteiros, em numero de 40, eram ordinariamente lavradores abastados, ou individuos a quem convinha este logar pelo privilegio que comsigo trazia, isentando-os de certos encargos e da milicia: assim, ou não se davam ao cumprimento de suas funcções, ou prevaricavam prejudicando a Fazenda Real, sem que houvesse quem por isso olhasse.
Era então livre a entrada no pinhal por todos os lados: os gados iam alli pastar, comendo e calcando os pinheiros recem-nascidos; e era mui facil a qualquer o cortar uma arvore, ás vezes de bastante valor, e fazer lenha della, ou leval-a para outro uso particular.
Neste mesmo anno o sabio Ministro deu novo regulamento para o pinhal, substituindo ás taes Superintendencias e seus numerosos Couteiros, uma administração adequada, cujas bazes ainda hoje se conservam, compondo-se o seu pessoal de
- 1 Administrador do pinhal.
- 1 Juiz conservador, logar annexo ao de Corregedor de Leiria, e que servia de Fiscal nas disposições do mesmo regulamento.
- 1 Mestre do pinhal.
- 1 Fiel dos armazens, no porto de S. Pedro de Muel.
- 1 Guarda, na fabrica da madeira.
- 1 Cabo dos Guardas do pinhal.
- 6 Guardas.
- 1 Patrão para os saveiros de conduzir madeira para bordo das embarcações do Arsenal da Marinha.
Estabeleceu em roda do pinhal casas de Guardas convenientemente dispostas, por onde eram obrigados a passar todos aquelles que nelle entrassem, e sahissem com madeiras, ou outros quaesquer productos do pinhal; afim de ali serem revistados, evitando-se por este meio os muitos roubos e prejuizos que aconteciam pela arbitraria entrada e sahida em todo o seu grande contorno. Estas casas eram então só 4, sendo a 1.ª no sitio da Sapinha, a 2.ª em Pedrianes, a 3.ª na Cova do Lobo, e a 4.ª nos caminhos de Carvide, proximo á Veira; hoje porém, em consequencia do augmento da população e casaes em torno do pinhal, se elevam ao numero de 12, como se vê na carta topographica junta⁽²⁾, as quaes adiante nomearemos.
⁽²⁾ No fim da Memoria juntaremos a carta e figuras de que a mesma faz menção.
Foi durante o seu ministerio que se construiram os primeiros fornos de fazer alcatrão em Portugal, extrahido dos nossos pinheiros; o que até ali se não tinha podido conseguir, julgando-se, pelos mal dirigidos ensaios que anteriormente se tinham feito, que estas arvores pela sua qualidade diversa e rezina menos liquida que a do pinheiro silvestre que nasce nos paizes do Norte, não eram disso susceptiveis. Para este fim mandou vir de Raguza um mestre, o qual obteve o efeito desejado.
Ordenou que se fizessem os embarques das madeiras para Lisboa na costa do pinhal, visitando duas vezes aquelles logares; e prohibio-os nos portos de S. Martinho e Figueira, com o que economisou muito a Fazenda Nacional, sendo então ainda mais bem fornecido de madeiras, e em muito maior abundancia do que presentemente, o nosso Arsenal de Marinha; tudo devido ás efficazes medidas que adoptou, que removendo as frivolas difficuldades que lhes oppunham, fizeram desenvolver bastante actividade neste interessante ramo.
Finalmente o bom regimen e fiscalisação que tem o pinhal de Leiria, deve-se datar da época daquelle habil Ministro, o qual vio com bastante fundamento a necessidade de andar ligada a prosperidade desta grande matta com a da nossa Marinha.
Os estragos que depois succederam com a invasão do exercito francez, e as grandes queimadas de 1806 e 1814, suffocaram tão prospera marcha, e lãnçaram outra vez o pinhal n’uma extrema decadencia, paralysando os actos da sua administração, que depois tornaram pouco a pouco a recobrar sua antiga marcha, até que, em 1823, foi creada uma commissão especial para visitar esta matta, e propor os meios necessarios para o seu restabelecimento. Dos trabalhos desta commissão resultou o regulamento de 1824, ainda hoje em vigor. Todavia como parte de sua doutrina vai d’encontro ás instituições politicas que presentemente regem este paiz, foi nomeada em 1840 uma commissão para tratar da reforma deste regulamento, e formação d’um Codigo Florestal em harmonia com estas instituições, servindo-lhe de base o Codigo Florestal adoptado em França⁽³⁾.
⁽³⁾ Consta-nos que este Codigo está concluido, e que será em breve presente ás Camaras Legislativas.
Esta extensa matta, situada proximamente 1 gráo ao Norte de Lisboa, contém uma superficie de 20:150.945 braças quadradas (3 legoas quadradas e 796.145 braças quadradas), e confina pelo Norte com a foz do rio Liz e freguezia da Vieira; pela parte de Leste com as freguezias de Carvide, Amor, Marinha Grande, e Pataias; pelo Sul com o camarção que pertencia aos frades Bernardos d’Alcobaça, e Valle d’Agoa de Medeiros; e pelo lado d’Oeste com o Oceano e grandes dunas d’arêa. O seu maior comprimento é de Norte a Sul, e tem 3 legoas e 844 braças; e de Leste a Oeste na sua maior largura 1 legoa e 860 braças.
Estas dunas ou areaes, situados entre o pinhal e a costa, têm de superficie 3:759.456 braças quadradas.
Existem tambem duas coutadas contiguas ao pinhal, e dentro da sua demarcação, ficando uma ao Norte com 1:655.301 braças quadradas, e outra ao Sul com 1:122.852 braças quadradas: a primeira, já toda cultivada pelos povos circumvisinhos, acaba de lhes ser legalmente cedida pela Portaria de 14 de Novembro de 1842.
A séde dos empregados deste pinhal, e da Administração Geral das Mattas, é no logar da Marinha Grande, povoação central que fica pegada ao pinhal pela parte de Leste; e que deve o seu engrandecimento ao mesmo pinhal, e á grande fabrica de vidros fundada por W. Stephens, e que hoje pertence á Fazenda Nacional.
A Administração Geral das Mattas, comprehendendo a particular dos pinhaes de Leiria, compõe-se actualmente de
- 1 Administrador Geral.
- 1 Thesoureiro.
- 1 Escripturario do dito.
- 1 Escrivão.
- 1 Ajudante do Escrivão.
- 2 Inspectores de divisão.
- 1 Guarda dos armazens.
- 1 Fiel dos armazens.
- 1 Meirinho.
- 1 Mestre da fabrica.
- 1 Patrão dos saveiros.
- 1 Cabo dos Guardas.
- 10 Guardas.
Além do grande pinhal de Leiria ha outras mattas annexas á sua administração, dando-se a tudo o titulo de Administração dos pinhaes de Leiria; e compondo-se de duas divisões, cada uma com um Inspector. Na 1.ª entra:
- Toda a parte do sul do pinhal de Leiria até ao aceiro da Cova do Lobo.
- O pinhal do Valado, e mattas de carvalhos do Vimeiro que eram do extincto convento d’Alcobaça, e o pinhal do Santissimo, proximo de S. Martinho.
À 2.° divisão pertence:
- Toda a parte do Norte do pinhal de Leiria até ao aceiro da Cova do Lobo.
- O pinhal do Amor, pinhal do Urso, e pinhal de Foja, e a matta madriz de sovereiros.
O Inspector da 1.ª divisão, Guarda dos armazens e Cabo dos Guardas devem residir segundo o regulamento, na Marinha Grande. E o Inspector da 2.ª divisão deve residir na Vieira. Para cada uma das divisões do pinhal ficam 5 Guardas de numero; e as casas de guarda em torno do pinhal onde o devem vigiar, são actualmente 12, como se vê na planta.
Na 1.ª divisão
- ª Guarda no alto denominado do Facho.
- ª No alto da Lagôa Cova, junto á Abronhosa.
- ª Na Sapinha, proximo á lagôa deste nome.
- ª Junto á Marinha Grande, a que chamam Guarda nova.
- ª Guarda de Pedrianes.
- ª Dita da Gaxeia.
- ª Dita da Cova do Lobo.
Na 2.ª divisão
- ª Guarda do alto da Cabeça Lousã.
- ª Dita da Meoteira.
- ª Dita dos caminhos de Carvide.
- ª Dita da Serraria, junto á Vieira.
- ª Dita do Forninho.
Em S. Pedro de Muel existe constantemente 1 Guarda, para rondar o pinhal por aquela parte; mas vive n’uma casa particular.
Todo o pinhal é dividido por aceiros, ou ruas alinhadas com 10 braças de largo; e por uma infinidade de caminhos de carro, afim de se lhe poder extrahir as madeiras e outros productos.
Quanto ao que diz respeito á salubridade do pinhal de Leiria, ainda que na primitiva devia ser bem pouca, por não passar a sua superficie d’um montão d’arêas e de pantanos, com tudo agora tem mudado muito de face pela existencia de uma tão rica matta. Purificado por esta o ar atmosferico, o clima de suas circumvisinhanças é hoje efectivamente saudavel, principalmente depois que se abriram algumas vallas, e se esgotaram certas lagôas: as principaes abriram-se durante a Administração do Tenente Coronel Raposo; porém muito se deve tambem nesta parte ao fallecido Administrador Varnhagen. Correm pelo pinhal varias ribeiras, e existem muitas nascentes d’agoa excellente, sendo algumas medicinaes, como as ferreas do Bréjo da Delviria, acondicionadas á custa do Bispo de Leiria D. Manoel d’Aguiar; as do Forninho e Garcia; as que em 1839 brotaram na praia de S. Pedro de Muel, cujo uso tem principalmente produzido bom effeito aos que soffriam molestias de estomago: e sobre todas as sulfuricas dos Covões junto a Monte Real, muito nomeadas, e cuja efficacia é bem reconhecida pela grande concorrencia dos povos visinhos.
Numa tão extensa matta forçosamente haviam d’existir todos os animaes selvagens de que fosse suceptivel o nosso paiz; e por isso no pinhal de Leiria se encontra o lobo, o javardo ou porco bravo, o ginete, a rapoza, o techugo, o gato bravo, o saca rabos, o ouriço, o tourão; a toupeira a doninha, a lebre, o coelho; etc. No ribeiro de Muel e no rio Liz apparecem algumas lontras. As cobras não são muitas, e as maiores não passam de 7 a 8 palmos de comprido, sendo delgadas; as viboras, porém, os lacráos e nicranços são mui frequentes. Dos passaros o mais remarcavel é o pica-páo, curioso não só pelas suas variadas côres, como tambem pela maneira como apanha os formigões e bichos que dão nos braços podres dos pinheiros cardidos, sendo este o seu principal alimento: pousa nos ramos ou no que alli chamam carrascas, e com o bico faz um alarido similhante ao som de castanholas, nas entradas das tocas destes insectos, que espavoridos ou talvez açanhados sahem fóra, occasião de que elle maliciosa mente se aproveita para os caçar: os seus ninhos tambem são nos troncos dos pinheiros podres, onde fazem escavações para esse fim; com tudo algumas vezes sahem-lhes frustradas suas fadigas, pois os enxames das abelhas (com quem se não atrevem) aproveitam estas escavações para theatro de seus trabalhos.
Bastante apparatosas se tornavam antigamente as montarias que se faziam no pinhal de Leiria, pelo grande concurso de povo armado, ordenanças, milicias, e tropa de linha, que ali se reunia. Ordinariamente levavam dois dias: no primeiro se batia para dentro do pinhal, começando a duas, tres, e mais legoas de distancia: ficava um cordão de noute em roda do pinhal, para não deixar sahir bicho algum, e para isso faziam fogueiras; e no outro dia batiam o pinhal para uma charneca, onde se formava o cerco ou az: fechado este, se matavam a ferro frio os lobos, javardos, etc.
Durante a nossa commissão em 1841 teve logar uma destas montarias, mas em ponto pequeno, á qual assistimos: a porção de pinhal que se bateu, era mui pouca; com tudo ainda se mataram dois lobos.
II.
Qualidades d’arvoredo.
O pinheiro bravo (Pinus maritima) é a arvore que mais abunda, e domina quasi exclusivamente toda a superficie desta grande matta. Dando-se esta arvore mui bem em terrenos soltos, seccos, e arenosos, não obstante crescer e vegetar espontaneamente em todo o nosso paiz; com tudo dá-se melhor nas costas maritimas. Todas estas circumstancias concorrem no terreno que occupa o pinhal nacional de Leiria; e como se conservam mui vastos os pinheiros nos seus primeiros annos, e não se cortam indistinctamente antes de chegarem ao seu devido crescimento, dando-se á maior parte delles o tempo necessario para a formação do cerne, é esta a razão porque os pinheiros bravos chegam alli a tão gigantescas dimensões, que sua madeira é superior á de todos os outros pinhaes existentes neste reino, e não, como erradamente julgam alguns, por serem d’uma qualidade diversa e exotica: no decurso dos nossos trabalhos topographicos encontrámos no pinhal de Leiria dois pinheiros, um com 178 palmos d’altura e 20 de cicumferencia no tronco, tomada junto á raiz; e outro com 158 palmos d’altura e 19 de circumferencia, contendo ainda este na parte inferior do tronco uma porção sã de 50 palmos. Estes pinheiros devem contar seculos d’idade, e talvez sejam da primitiva.
Do pinheiro manso (Pinus pinea) ha ali mui pouca quantidade. Não se dando tão bem estes pinheiros junto ás costas do mar, e precisando de um terreno em que profundem com facilidade suas raizes, é esta a causa da sua escacez no pinhal de Leiria; tendo-se preferido, com bastante motivo, as sementeiras dos pinheiros bravos, por vegetarem melhor naquelle local, e crescerem muito depressa. Junto ao alto da Cabeça Lousã fez-se uma sementeira destes pinheiros mansos ha mais de 50 annos; porém pela má qualidade do terreno acham-se definhados, e crescem lentamente. Proximo ao aceiro do Rio Tinto, para a parte de S. Pedro de Muel, e junto á praia da Vieira, se encontram com elles algumas porções de terreno; mas ainda estão pequenos, por terem sido semeados depois da queimada de 1824.
Estas são as duas unicas especies de pinheiros que formam tanto esta matta, como as mais do reino, e que são (segundo Brotero) naturaes deste reino, ou nelle ha seculos naturalisadas.
Algumas tentativas se têm feito entre nós para aclimatar outras especies de pinheiros do Norte; porém ou seja pela falta d’escolha d’um terreno que lhes fosse adequado, ou pelo estado de deterioração em que por ventura estaria a semente, ou mesmo talvez por falta do agazalho e abrigo que precisam estas arvores nos seus primeiros annos, não tem progredido a vegetação. É para lamentar, todavia, que havendo em Portugal tantas serras e terrenos incultos proprios para nutrir estes pinheiros, como comprovam as experiencias feitas por sabios e acreditados Botanicos, não se tenham creado mattas d’uma madeira tão preciosa e necessaria para a mastreação de nossos navios, e em geral de tanto uso em Portugal, assim em architectura naval, como civil. Desta incuria resulta, além da perda de tantas utilidades que comsigo trazem similhantes arvoredos, o pagarmos annualmente um tributo tão avultado aos estrangeiros, e que bastante peza na balança commercial e politica.
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, sendo Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Marinha e Ultramar, mandou vir do Norte em 1800 varias sementes de pinheiros, larissos, e abetos: destas, as que semearam em varios locaes do terreno pertencente ao pinhal de Leiria não vingaram, e alguns pinheirinhos que nasceram, pereceram logo nos primeiros annos. Não succedeu com tudo outro tanto aos que nessa época igualmente se semearam em outras partes do reino, com especialidade na serra do Marão, onde vigorosamente cresceram; porém como não houvesse methodo regular nestas sementeiras, nem se olhasse mais para a conservação dos pinheiros nascidos, baldados foram os esforços deste diligente Ministro, podendo aliás termos agora viçosas mattas desta especie tão desejada.
Durante a administração do Coronel Varnhagen fizeram-se algumas sementeiras de pinheiros larissos, proximo á lagôa da Sapinha, mas infelizmente pouco resultado se tem obtido desta empreza: os poucos que nasceram da primeira vez, posto que ainda vegetem, não dão esperanças para o futuro d’um crescimento vigoroso; e as primeiras pinhas que crearam além de virem tardias, a amendoa encerrada no pinhão não estava formada completamente. As ultimas destas sementeiras feitas em 1840, por qualquer que fosse o motivo, tambem não vingaram, nem mesmo nasceram, senão 9 a 10 pinheirinhos.
Assim bem se deixa vêr, que sendo o pinheiro bravo ou maritimo o escolhido para habitar naquelles arenosos logares, elle, como primeiro senhorio, tem tomado posse, e posições tão avantajadas em toda a sua superficie, que não consente rivaes, nem quem o afronte, ainda que seja da sua propria familia. É desta maneira que encerrando o pinhal de Leiria tanta diversidade de madeiras como o sanguinho, o amieiro, o loureiro, o salgueiro, o samouqueiro, o carrasco, o folhado, o aroeiro, o aderneiro, a sorveira, o zambujeiro, e o ervedeiro ou medronheiro, todas estas arvores, achando-se vigiadas por tão altivos e soberbos pinheiros em torno de si, se conservam submissas, e nunca conseguem chegar ás proporções e robustez que por ventura teriam, se livremente respirassem.
III.
Classificação e applicação das madeiras, e outros productos.
As madeiras do pinheiro bravo ou maritimo podem-se dividir em tres classes distinctas no pinhal de Leiria, a saber:
- ª classe. Madeira sã para construcções navaes e civís.
- ª classe. Madeira de refugo para lenha, aproveitando-se alguns cerneiros.
- ª classe. Madeira resinosa a que chamam acha, para a extracção do alcatrão, pez, etc.
1.ª classe.
Bem se deixa vêr que nesta classe entram todos os pinheiros que se apresentam em bom estado, e com dimensões convenientes para delles se tirarem diversas peças de construcção. A sua madeira é com especialidade applicada para o Arsenal de Marinha em Lisboa. No principio de cada anno o Inspector deste Arsenal dirige á Secretaria d’Estado dos Negocios da Marinha, uma relação circnmstanciada das peças de madeira que precisa, em attenção ás obras projectadas ou em andamento; e esta relação é remettida á Administração Geral das Mattas, para se proceder ao respectivo córte, e sua promptificação. Além desta reqnisição annual, se fazem outras eventuaes, se ha urgencia de madeiras. O mappa n.° 3 apresenta a quantidade de todas as madeiras de construcção que têem sahido do pinhal nos ultimos 8 annos, de 1835 a 1842, tanto para o Arsenal de Marinha, como para o do Exercito, e particulares.
2.ª classe.
Tem-se reconhecido pela experiencia que a idade em que se acha completamente desenvolvido um pinheiro, é entre os 70 e 80 annos: d’então data a sua decadencia, e ainda que continue a vegetar e a engrossar, com tudo sua seiba começa a decompor-se por não encontrar no lenho a mesma disposição e facilidade de poder girar por entre as fibaas, e exercer suas funcções vegetativas; principiando assim a obstruirem-se e engorgitarem-se certos canaes e póros destinados a absorver os diversos alimentos da terra e do ar; os ramos ou braçadas, que directamente sahem do tronco central dos pinheiros, bem manifestamente inculcam esta decadencia pela maneira como, já cançados de respirar por suas extremidades, vão pouco a pouco declinando a ponto de fazerem augulos maiores de 90° com a direcção do tronco central, quando estes no seu começo são apenas de 5 a 8 gráos. Assim, no estado de vigor em que se deve cortar o pinheiro, anda este angulo entre 60 a 70°. É este um dos principaes meios de conhecer a idade destas arvores; e a que chamam coroação; sendo outro inquestionavel a côr e aspecto da casca, que pelo tempo se vai tornando mais liza e avermelhada. Para se saber porém se a madeira estará sã ou não, ha um indicio infallivel que é o do cogumello⁽⁴⁾, que logo que o pinheiro começa a apodrecer, annuncia immediatamente este estado, apparecendo na superficie do tronco, e quasi sempre nas concavidades que deixam os ramos seccos que delle se despegam. Os pinheiros assim atacados são chamados cardidos; e posto que por isso percam o seu principal merecimento e valor, têm ainda mesmo assim muitas applicações. Como acontece vir o cogumelo, e não estar o pinheiro podre em todo o seu comprimento, mas só naquelle logar em que ele se manifesta; ainda se aproveita ás vezes parte de sua madeira sã em peças curtas de construcção. A outros tira-se-lhes o borne⁽⁵⁾; e ficando só com o cerne, tomam então o nome de cerneiros, e assim são vendidos. Esta madeira de cerne, que se póde tirar tambem dos pinheiros sãos em todo o seu comprimento, é de uma duração admiravel, e póde existir seculos sem se corromper: não se presta tão facilmente ao artista, como outra qualquer, por causa da sua rigeza e união das fibras, mas é preferivel por outras qualidades.
⁽⁴⁾O cogumello é uma planta parasita, que precisa de certas substancias putridas para se gerar, e que se desvia muito da marcha geralmente seguida nas outras plantas. O Sr. Manoel Afonso da Costa Barros, actual Inspector da 1.ª divisão do pinhal de Leiria, tem uma opinião diferente da maioria, a respeito do cogumello que dá nos pinheiros: quer este Senhor que não seja planta neste caso, mas uma excrescencia que resulta da decomposição do cerne do pinheiro que, fermentando pelo estado de putrefacção em que se acha, augmenta de volume, e não cabendo dentro da arvore, sahe pelas aberturas que ficam dos braços podres, quando cahem, e se separam do tronco: o que é certo é que sempre nestes logares apparece o cogumello nos pinheiros cardidos do pinhal de Leiria: não seria fóra d’interesse para a botanica o analysar este objecto.
⁽⁵⁾Nos pinheiros e em todas as arvores existem as seguintes classificações, partindo do interior do tronco para fóra: medula, cerne, borne, alburno, e casca.
Medula é um tubo interior, que parte pelo pé e troncos desde a raiz até ás extremidades dos ramos, formado d’uma substancia pouco consistente e delicada, disposta como o tutano nos ossos. Cerne é a reunião das camadas concentricas existentes em roda da medula, e só se fórma (depois da arvore estar adulta) dos residuos dos diversos liquidos que a nutrem, sendo este o estado de perfeição do lenho, e que apresenta mais duração em consequencia do compacto de suas fibras. Borne é a camada que se segue em roda do cerne, e por onde giram quasi exclusivamente os liquidos. Alburno é a ultima camada que involve o borne, ficando entre este e a casca, e se compõe d’uma substancia tenra e gommosa, que alli depositam os diversos liquidos todos os annos para augmento do tronco da arvore: este alburno se vai successivamente solidificando até ser da natureza do borne, ou converter-se nelle mesmo. A casca finalmente é bem conhecida, sendo de grande importancia para o vegetal: sem ella, elle brevemente pereceria; porque não tendo este escudo os diversos fluidos gazosos e liquidos, não poderiam exercer suas funcções e se extravasariam, sobre tudo a seiba descendente, e seccaria o vegetal.
Os pinheiros com o cerne completamente cardido têem tambem uma serventia particular, e vem a ser para calhas e conducção d’agoas subterraneas. A vantagem que elles apresentam neste estado, é de não ser necessario fural-os; pois aprodecendo-lhes todo o cerne sómente, e conservando-se sempre são e verde o borne em quanto o pinheiro vegeta, acontece encontrarem-se pinheiros ôcos desde os ramos superiores até á raiz. Póde-se tambem tirar dos pinheiros cardidos alguma acha como adiante veremos.
O que sobra destas applicações é lenha para queimar que, junta com a que fica dos córtes dos pinheiros sãos, vai entrar na fabrica dos vidros da Marinha Grande, e consumo dos particulares. Os numerosos carreiros empregados neste trabalho a conduzem primeiro para junto de determinadas casas dos guardas do pinhal, e sendo alli revistada pelos guardas, a racham convenientemente naquelles logares a que chamam casqueiros, e que servem de retem para d’alli a levarem para a fabrica dos vidros, onde ha ordinariamente um grande deposito. O numero de carradas de lenha que actualmente consome esta fabrica por anno anda de 12 a 13.000: cada carrada deve formar um paralellopipedo com a base de 7 palmos de comprido e 5 de largo e 4 1/2 palmos d’altura: as cavacas fazem o lado mais pequeno desta figura, e por isso devem ter 5 palmos de comprimento. Uma carrada de lenha com estas dimensões, vindo rachada e prompta a metter no forno, custa á fabrica 360 réis; e por consequencia o seu combustivel annual importa em 5:040$000 réis a 5:400$000 quantia que reverte toda directamente em beneficio destes carreiros, que pela maior parte são lavradores pobres, que muito precisam deste recurso para entreterem seus bois, principalmente no inverno.
3.ª classe.
Chama-se acha no pinhal de Leiria a toda a madeira de pinho que contém certa quantidade de partes rezinosas, das quaes se possa extrahir alcatrão, pez, etc. É esta a producção mais rica que dá o mesmo pinhal, e da qual se podem tirar grandes vantagens, como adiante se verá. Diversas opiniões existem entre os physiologistas, e botanicos sobre a maneira como ella é formada durante a assimilação da arvore. O que se sabe porém, é que ela tem logar e se congrega por entre as fibras lenhosas, principalmente por onde a seiba não póde livremente girar: a esta funcção se chama entear. A acha póde-se obter dos pinheiros natural ou artificialmente. A natural, que se apresenta sempre no cerne, toma diversos nomes conforme se acha disposta, a saber:
- º Acha massiça. Quando toda uma porção de tronco ou raiz se acha enteada sem intervallo algum cardido.
- º Costa. Quando existe enteada uma das zonas exteriores do cerne, achando-se o interior todo cardido.
- º Forrada. Quando as partes enteadas se apresentam misturadas com partes inteiramente lenhosas ou cardidas.
- º Rajos. A que apparece nos nós dos pinheiros.
A acha tambem se distingue pelas côres que apresenta de amarella, branca, e vermelha, sendo esta ultima côr a mais trivial.
Para a formação desta acha natural concorre a idade do pinheiro, qualidade do terreno, sua exposição para com o sol, sua collocação isolada, e muitas outras diversas causas.
Encontram-se muitas vezes pinheiros reduzidos a este estado rezinoso, que dão 200, 300 e mais arrobas d’acha magnifica, e que podem por isso render mais de 30$000 réis em productos extrahidos.
Quanto á acha artificial e meios de a obter, irão descriptos quando tratarmos dos productos rezinosos.
Nada temos a descrever sobre a madeira do pinheiro manso e suas applicações no pinhal de Leiria, por isso que os poucos que existem nesta matta, não se têem cortado em razão da sua pequenez. Diremos entretanto de passagem que a madeira destes pinheiros, pela sua structura, e configuração volteada, póde ser vantajosamente empregada nas ossadas das embarcações; e sua acha, posto que não dê um alcatrão tão liquido como a do pinheiro bravo, com tudo é mais abundante em rezina.
As arvores d’outras especies, que já notámos, existirem espalhadas por todo o pinhal de Leiria, não apresentam dimensões para serem empregadas na construcção naval; todavia têem muitos outros usos e applicações, principalmente para os lavradores. Destas o ervedeiro ou medronheiro (Arbustus unedo de Linneo) tem o primeiro logar. Encontra-se este util arbusto com frequencia em todo o pinhal de Leiria, sua madeira é de boa qualidade e duração, e póde-se empregar com preferencia em obras de torno, marceneria, carros, e instrumentos agricolas; sua cêpa é excellente para carvão, e para isso já foi applicada durante alguns annos, ficando até o nome de Carvoaria a um sitio do pinhal onde elle se fazia: suas folhas servem de pasto a alguns animaes; e seu fructo bem conhecido é pela fermentação alcoolica que desenvolve. O Sr. José de Sousa e Irmãos, da Marinha Grande, com casa de commercio na Figueira, trazem arrematado este fructo annualmente pela quantia de 40$000 réis, para o empregarem na sua fabrica de distilação estabelecida no logar da passagem; e delle têm extrahido 14 a 17 pipas d’agoardente por anno, podendo ainda fazer muito mais, se o preço a isso os convidasse, attendendo ás despezas de conducção d’alli para a Figueira, e ao muito vinho que annualmente se queima naquellas immediações.
O loureiro e salgueiro negral tambem abundam no pinhal, e têm muito gasto para arcos de vazilhame, sendo destes os que se empregam na fabricação dos barrís para o alcatrão: as aduellas para estes barris são tiradas de pinheiros que vegetam em logares mais humidos e enxarcados do pinhal, em consequencia de sua madeira ser mais macia, e flexivel para este fim.
Um dos mais uteis productos do pinhal de Leiria é sem duvida a grande quantidade de estrume vegetal, que elle fornece á agricultura. Sendo em geral todos os terrenos que circumdam o pinhal arenosos e de sua natureza fracos e estereis, conservar-se-hiam ainda hoje incultas milhares de geiras e legoas inteiras, se não fosse este precioso meio de tornar a terra productiva. Dos estrumes extrahidos do pinhal de Leiria, o mais apurado e melhor é um a que alli chamam rapão e piórno: encontra-se nos logares mais humidos e sombrios, e apresenta-se com uma crusta balôfa sobre a terra, formada de certo musgo produzido por uma fermentação vegetal nos residuos que apodrecem cahindo das arvores. Todavia os fetos, e a caruma secca ou folha dos pinheiros têm muito uso para o mesmo fim.
O muito matto que do pinhal se tira constantemente, bem como lenha e varólas de desbaste, não são objecto de menos monta, nem de menos utilidade para a agricultura.
Por estes recursos e muitos outros motivos, póde-se dizer affoutamente que o pinhal de Leiria é o amparo e sustentaculo de oito freguezias que o rodeiam; e delle vivem, directa ou indirectamente, alguns milhares d’habitantes. É a elle que se deve o consideravel augmento de fogos e a cultura de tantos terrenos maninhos em seu contorno, particularmente nestes ultimos annos, de que resultam vantagens bem palpaveis ao Estado e á nação. Só a freguezia da Vieira, que não existia ha 100 annos, compõe-se hoje de 400 fogos com 2.000 ha bitantes.
IV.
Córtes, conducção, e embarque das madeiras.
Um dos objectos da maior importancia em qualquer matta, e que exige muita circumspecção e perspicacia, é o córte das arvores. É necessario primeiro que tudo calcular o numero de páos que se poderão cortar annualmente em relação á grandeza da matta, estado de vegetação em que se achar, e numero de annos que levarem a formar-se as arvores de que ella constar. Determinado este numero não se deve poupar jámais o seu córte regularmente; pois longe de beneficiar essa matta e tender para a sua conservação, a demora de taes arvores não fará mais do que, envelhecendo e apodrecendo, tomar o logar não só a um igual numero que as deviam substituir, mas a todas aquellas que deixam de vingar por causa do grande ambito que occupa a sua ramagem. Nos pinhaes com tudo devem-se deixar alguns pinheiros, a que chamam pais ou balizas, os quaes servem essencialmente para a propagação da especie, por nascerem de sua semente espontaneamente os pequenos pinheiros, servindo ao mesmo tempo estes pais para a creação da acha; porém devem ficar isolados em grande distancia uns dos outros. Em consequencia das grandes queimadas que tem sofrido o pinhal de Leiria, não se tem podido estipular uma marcha regular no córte de suas madeiras; e talvez por isso ele abunda tanto em pinheiros velhos e podres. Em alguns paizes usam fazer o córte nas mattas por talhões a eito, dividindo-as em tantos destes talhões quantos são os annos que leva uma de suas arvores a formar-se; porém deve forçosamente seguir-se a mesma ordem nas sementeiras dos talhões, aliàs se toda a matta estivesse da mesma idade não podendo deixar de estarem feitas as arvores no primeiro córte, quando se chegasse ao ultimo córte, teriam o duplo de existencia e por isso estariam muitas podres. Nos pinhaes principalmente applicados para construcção naval, como é o nosso de Leiria, não se póde seguir á risca este systema, em consequencia da difficuldade que haveria em encontrar n’um só talhão certas peças de madeira, como váos de fragata e de náo, rodas de prôa, etc. qne demandam pinheiros d’uma configuração muito particular; e para a promptificação das taes madeiras é necessario actualmente correr todo o pinhal de Leiria: todavia podem-se deixar na superficie semeada de novo os pinheiros em que concorrem estas circumstancias.
Quanto á época mais favoravel para o córte das madeiras, ainda que alguns autores exceptuem as arvores rezinosas, é geralmente recommendado que seja na estação do inverno, nos mezes de Novembro, Dezembro, e Janeiro. Neste tempo, sendo a seiba menos abundante, menos restos nocivos por isso ficarão pelos póros lenhosos que promovam a podridão; além de que, tendo as madeiras cortadas desde esta época até ao estio, uma temperatura regular e dilatada, podem mais convenientemente enxugar dos liquidos, que em si encerrarem. Não acontece porém no pinhal de Leiria ter sempre logar o córte nestes mezes, não só por virem muitas vezes as requisições fóra de tempo, mas tambem por outros motivos, principalmente por falta de meios pecuniarios; assim em quasi todo o anno se fazem córtes no dito pinhal. Para estes córtes e manufactura das diversas peças de madeira ha um capataz, que deve ser carpinteiro perito neste oficio, debaixo da direcção immediata do Inspector em cada divisão do pinhal, pago nos dias só de trabalho, o qual passa vistoria ao pinhal e marca os pinheiros necessarios e que estão nas circumstancias de darem as peças de madeira exigidas. Depois são chamados carpinteiros de fóra que se ajustam por empreitada, umas vezes na totalidade do córte, outras em parte. Estes carpinteiros se combinam entre si ordinariamente por sortes que deitam, para dois a dois cortarem cada pinheiro que se apresentar primeiro, por influir muito neste trabalho a grossura do tronco. Partem assim com o capataz para o pinhal; e este lhes vai apontando os pinheiros destinados ao córte, ao qual deve presidir: cortados os pinheiros, passam a falquejal-os ou preparal-os de machado, riscando primeiro o capataz a configuração da peça de construcção; chamam-se depois os serradores necessarios, e assim ficam as peças promptas espalhadas pelo pinhal. Para a conducção desta madeira são intimados os carreiros inscriptos na Administração Geral, e que gozam por isso de certos privilegios. Estes a conduzem para os portos d’embarque por um preço estipulado pela mesma Administração por cada pé cubico em uma legoa de transito, augmentando este relativamente, quando a peça excede um determinado volume⁽⁶⁾. Para este fim se lhes passa uma guia, que limita juntamente o tempo da conducção; porém elles, receando a falta de pagamento (em consequencia da demora que soffre quasi sempre a prestação mensal que deve entrar no cofre da Administração Geral das Mattas) ou por outras conveniencias particulares, a demoram muitas vezes bastante tempo junto ás suas moradas; de que resulta não só o inconveniente de não chegarem em tempo opportuno d’embarque, mas até a susceptibilidade de se deteriorarem. Sobre estes e muitos outros objectos regulamentares, bem como nas penas e multas dos infractores, bem necessarias eram as providencias do Codigo Florestal, em que se trabalha.
⁽⁶⁾As conducções no pinhal de Leiria pagam-se a 15 réis por pé cubico em cada legoa de transito, não excedendo as peças 30 pés cubicos; de 31 a 40, pagam-se a 17 à réis; de 41 a 50, a 20 reis; e de 50 para cima a 22 à réis.
É por falta d’um meio prompto e economico na conducção e embarque das madeiras do pinhal de Leiria para Lisboa, que este perde uma grande parte do seu valor, e o Estado deixa de tirar todas aquelas vantagens que oferece uma tão grande matta. Forçoso seria applicar algumas sommas para este fim; e os varios productos do pinhal, que então se p diam vender, indemnisariam bem depressa do trabalho, e avanço destas quantias.
O pinhal de Leiria, ainda que banhado pelo Oceano, offerece em geral uma costa batida e pouco aportavel; porém nos seus extremos esta circumstancia se modifica. Em S. Pedro de Muel, extremo do Sul, era o unico deposito onde se embarcavam todas as madeiras do pinhal no tempo do Ministro Martinho de Mello. Os embarques ali se faziam constantemente durante todo o anno, e nunca faltou madeira no Arsenal de Marinha em Lisboa; sendo então incomparavelmente maior o numero de construcções e fabricos navaes. Hoje porém, depois que o fogo consumio todo o pinhal ali contiguo, só convem fazer este embarque na praia da Vieira, extremo Norte do pinhal junto á foz do rio Liz. Embarcando ainda actualmente nesta parte bastante madeira, pena é que se não façam mais esforços para conseguir por alli a extracção de todos os productos do pinhal.
A conducção por terra aos portos de S. Martinho e Figueira torna-se mui dispendiosa e mesmo difficil, pelas más estradas, falta de carros e sua tosca construcção, má qualidade de bois e seu fraco alimento, em consequencia das poucas pastagens que oferecem aquelles terrenos; além de que estes só podem trabalhar em taes conducções, quando não são necessarios á lavoura: occorrendo tambem serem estes dois portos d’inverno bastantemente arriscados, e já tem chegado, em S. Martinho principalmente, a estarem hyates carregados de madeira dois mezes á espera de vento favoravel para sahir. Assim, sendo a despeza com as embarcações a mesma que se fossem á Vieira, accresce toda aquella que se faz na conducção da madeira por terra, a qual monta a perto de 300$ réis por cada carga d’um hyate.
V.
Queimadas.
É o fogo o maior inimigo que têm todas as mattas e arvoredos, com especialidade os rezinosos. O nosso pinhal de Leiria delle tem sido victima amiudadas vezes, causando-lhe perdas incalculaveis. Seus estragos são tão rapidos como difficeis de reparar; e em poucas horas ele anniquila a obra em que a natureza assiduamente trabalhou pelo espaço de um seculo, que tanto leva a formação d’um pinhal completo!… Uma vez que adquira força o fogo n’um pinhal, e haja vento suficiente para o encaminhar, frustrados serão os meios de o atalhar se este vento não mudar ou abrandar. Ainda que se façam cortaduras, e outros obstaculos no terreno, as pinhas incendiadas impellidas pelo vento irão em abundancia semear o fogo e destruição a distancias consideraveis. Horrivel e arriscado é na verdade um tal espectaculo!… Mas no entanto não se devem poupar esforços para demorar tão terrivel inimigo até que mude o vento ou abrande, o que muitas vezes acontece. O contra-fôgo⁽⁷⁾ algumas vezes tem logar nestes incendios; porém precisa-se de muita circumspecção em applica-lo; aliàs póde produzir ainda o efeito de augmentar consideravelmente a queimada.
⁽⁷⁾ Chamam contra-fogo ao fogo applicado em sentido opposto ao da queimada, e da parte para onde elle corre: a distancia que não haja receio do fogo, durante o trabalho, se faz um córte em linha recta, e se abre um aceiro em largura tal que não passe a chamma d’um lado a outro; feito isto incendeia-se toda a margem do lado da queimada: então o fogo, não podendo arder para a parte do aceiro, cresce para a queimada. Logo que esta se aproxima, e se encontra com este segundo fogo, tem logar um choque espantoso, que faz atenuar e mesmo anniqillar muitas vezes a queimada, ou pelo menos não encontra alimento para diante, em consequencia de ter já ardido o pinhal pelo fogo deitado de proposito.
Existem todas as cautellas no pinhal de Leiria, para evitar taes acontecimentos. É prohibido o fumar junto a elle, disparar tiros, e fazer outros quaesquer fogos: e mesmo ás queimadas, que os particulares fazem em toda a charneca que o circumda para rotear o terreno, deve preceder uma licença da Administração Geral das mattas, dando para isso as providen cias necessarias.
Antes das primeiras chuvas é quando ha o maior perigo: o matto então está resequido, e o mais pequeno contacto com o lume lhe faz produzir lavareda. Neste tempo que alli chamam da defeza, augmenta-se o numero de guardas, e se multiplicam as rondas, havendo tambem alguns guardas a cavallo para este fim.
O fôgo quando se communica a uma matta exteriormente é sempre o mais perigoso, em consequencia do vento augmentar consideravelmente a sua acção; não acontece tanto assim entre os arvoredos onde, existindo o ar mui rarefeito e estaccionado, é facil extinguir qualquer incendio. É para evitar esta communicação exterior do fôgo, que em todo o contorno do pinhal de Leiria ha um grande aceiro, a que chamam aceiro geral com 12 braças de largura, além de outro com 10 braças de largo que atravessa o pinhal noutras direcções, como se vê na planta. Estes aceiros, com particularidade o geral, são lavrados e limpos todos os annos; e se queima o matto da charneca contigua quando se acha crescido. Uma grande parte desta charneca acha-se actualmente cultivada até este aceiro geral, e quanto mais augmentar esta cultura, mais livre estará o pinhal dos fogos exteriores.
Seria fastidioso e mesmo difficil por falta de noticia, o relatar todas as queimadas que tem sofrido o pinhal de Leiria desde a sua fundação. Assim notaremos as principaes e cujos vestigios ainda se conhecem pelo estado de crescimento em que se acham os pinheiros.
A primeira teve logar em Agosto de 1806: pegou dentro do pinhal junto á Ponte Nova em consequencia da ponta d’um sigarro ou lume que alli deixaram uns homens empregados no corte das madeiras.
A segunda foi em Agosto de 1814, e teve origem naquelle mesmo sitio; por ter pegado fogo num grande eixo de madeira que alli existia pertencente ao engenho de serrar, e de que se serviam uns homens que costumavam ir cortar páos para caejados, e os aqueciam alli para os endireitar: o fogo passou primeiro ao engenho de serrar, e depois ao pinhal.
A terceira aconteceu em Agosto de 1818 motivada por um raio que cahio no sitio do Pinhal chamado Brejo do Ferro proximo á Vieira; havendo por esta occasião mais alguns pequenos incendios causados pelos raios cahidos em varios pontos.
A quarta finalmente succedeu em Julho de 1824: o fogo veio da charneca a que chamam Camarção, ao sul do pinhal entre o Alto do Facho e S. Pedro; em consequencia d’uma pequena queimada que alli fizeram para semear os chamados covões, ou certas baixas mais ferteis: como o vento estivesse do Sul e muito rijo, chegou o fogo ao aceiro geral; e saltando por cima, se communicou ao pinhal. É este o maior incendio que consta ter havido no pinhal de Leiria, e mais importante seria, se uma grande parte do terreno, por onde elle passou, não tivesse sofrido as queimadas então ainda recentes de 1806 e 1814. Na planta que ajuntâmos a esta memoria, se acham marcados os contornos e extensão destas queimadas que actualmente se encontram todas cobertas de viçosos pinheiros, uns nascidos espontaneamente, outros por meio de sementeiras que posteriormente se fizeram.
VI.
Sementeiras.
Sendo a plantação de arbustos e arvoredos, com especialidade os pinhaes, o unico meio de suster e demorar as arêas moveis que constantemente tendem a innundar os continentes; não podem com tudo as mattas sobre estas formadas deixar de sofrer os damnos de tão forte inimigo; e se a mão do homem as não auxiliar, elas pelo andar do tempo, ainda que disputando palmo a palmo o terreno que occupam, irão cedendo o campo ao seu adversario até ficarem totalmente submergidas.
Tal é a marcha que se observa no nosso pinhal de Leiria; e como a força de innundação das arêas está n’uma razão progressiva das distancias que estas se affastam da costa maritima, são espantosos os progressos que annualmente fazem para dentro deste pinhal. A vista da planta, em que existe a linha de limite, se póde conhecer o quanto têm entrado as arêas para dentro do pinhal; tendo-o havido até á borda do mar: de que dão indicios nada equivocos alguns troncos e raizes que se têm encontrado nas excavações que produzem as tempestades. De summa importancia e necessidade urgente é na verdade o olhar para este objecto, fazendo uma sementeira desde a Foz do Rio Liz até ao Ribeiro de Muel; aliàs crescerão a um ponto tal as dificuldades disto se conseguir, que será este objecto mais uma calamidade para este paiz, e com justiça seremos alcunhados de barbaros pelos nossos vindouros, por uma incuria tão imperdoavel, deixando crear força as arêas em toda a nossa costa maritima. Martinho de Mello e Castro não deixou de conhecer a importancia deste objecto; e no seu Ministerio, sendo Administrador do pinhal o Tenente Coronel Ricardo Luiz Antonio Rapozo, se deu começo a este interessante trabalho; bem como na Administração do Coronel Warnhagen; porém a falta de meios que tem experimentado o cofre das mattas, e a reducção que sofreu a sua receita em 1834, passando de 1:800$000 r. mensaes a 1:200$000, deixou infructuosa esta tentativa.
Muito convinha applicar annualmente uma quantia certa e determinada para o entretenimento destas sementeiras, podendo esta talvez deduzir-se com facilidade de qualquer onus que se impozesse nos muitos productos do pinhal que gratuitamente delle sahem; pois sendo o pinhal de Leiria uma propriedade nacional, e não se podendo estender estes beneficios a todo o reino, justo é que concorram para a sua conservação aquelles que unicamente o disfrutam.
Quanto ao methodo que se emprega nas sementeiras dos pinhaes, nada diremos á vista do que sobre isto ha escripto, tanto na interessante = Memoria sobre a necessidade e utilidade do plantío de novos bosques em Portugal, por José Bonifacio de Andrade e Silva, impressa em Lisboa na Tipographia da Academia Real das Sciencias, em 1815 =; como no insinuante = Manual de instrucções praticas sobre a sementeira, cultura e córte dos pinheiros, etc., escripto por ordem do Ministerio da Marinha, pelo ha pouco falecido Coronel F. L. G. de Warnhagen, então Administrador Geral das mattas, impresso em 1836 na Typographia da mesma Academia.
Depois das extensas sementeiras que mandou fazer ElRei D. Diniz, e que deram o nome e formação ao pinhal de Leiria, não nos consta ter havido alli outras em ponto grande, principalmente nos areaes: as que se conhecem hoje pelo estado de crescimento dos pinheiros, são as seguintes: — A sementeira da praia, durante a Administração do Tenente Coronel R. L. A. Rapozo em 1791: teve principio junto á barraca do Infantado na praia da Vieira, e acabou onde hoje chamam cabo do matto⁽⁸⁾. Por fóra desta teve logar a mandada fazer pelo Coronel Warnhagen em 1830; porém não podendo entreter-se esta, em consequencia dos poucos meios pecuniarios que já dissemos ter a Administração das mattas, acha-se inteiramente coberta de arèas, e perdida. A sementeira do pinhal manso junto á Cabeça Louzã feita tambem no tempo da Administração do Tenente Coronel Rapozo; mas a escolha, do terreno foi má; e por isso não fez progressos em vegetação. Em consequencia da grande queimada de 1824, fizeram-se sementeiras mais espaçosas para cobrir todo aquelle terreno queimado onde não podia chegar a semente ou pinhões despedidos dos pinheiros velhos que ficaram; e teve isto logar na superfície comprehendida entre a lagôa da Sapinha e de S. Pedro de Muel.
⁽⁸⁾ Consta-nos que esta sementeira foi mal dirigida; e ainda que exista uma grande tira coberta de pinheiros já altos, e fizesse por isso grande beneficio ao pinhal, com tudo metade ficou submergida pelas arêas.
VII.
Productos rezinosos.
Da rezina, sua extracção das arvores, e applicações.
De tempos mui remotos consta ter-se empregado a rezina de varias arvores, mais ou menos preparada, como meio de vedar da agoa as embarcações; e parece datar seu uso desde que houveram os primeiros corpos fluctuantes de madeira. Os gregos e syrios, segundo Theophrasto, bem como os romanos conforme Plinio, já davam nas suas embarcações um pez liquido a que chamavam Apochyma. Entre os selvagens d’America do Norte observaram os primeiros viajantes, ser elle applicado nas fendas de suas canôas. E até a sagrada escriptura nos menciona = Que a grande arca da salvação das especies era breada por dentro e por fóra.
Longa e fóra do nosso alcance seria a narração de todos os usos das rezinas: é com tudo inquestionavel serem uma das mais ricas producções da natureza, pela immensidade d’applicações que tem nos diversos ramos da Sociedade. Á Marinha ellas fornecem o alcatrão, o pez e o Breu, substancias bem preciosas, tanto para a conservação das madeiras, como do maçame dos navios. Á pintura ellas dão a agoa raz, diversos oleos e o espirito de terebenthina, e são base essencial de brilhantes vernizes e tintas, como o preto chamado = pós de çapatos, etc. Á medicina ellas offerecem uteis usos, taes como balsamos, emplastros, unguentos, e o creosote modernamente descoberto por Reichembach de Blansko, tão efifcaz para sarar ulceras carcinomatosas, affeções de peito, etc. Nas tinturarias e estamparias bem conhecido é o vinagre de ferro ou calda preta, que já se preparou em 1807, na fabrica da marinha grande, e hoje se não faz, a pezar da facilidade de o conseguir; pois se compõe de oxido de ferro com a agoa russa ou accido pyrolenhoso, de que ha ali muita abundancia, por não ser procurado pelos nossos fabricantes, podendo estes aliàs compra-lo por muito mais baixo preço, do que nos vem do estrangeiro. Finalmente a rezina, quer seja por si só, quer fazendo parte de muitas drogas, tem entrada em grande numero de operações chimicas, e em quasi todas as artes e oficios.
É o pinheiro, d’uma ou d’outra especie, a arvore geralmente escolhida por todas as nações, pela abundancia e qualidade da rezina que produz, para delle se extrahir o alcatrão e pez maritimo. Não obstante, muitas outras arvores encerram substancias rezinosas, e algumas mui ricas e procuradas; nenhuma com tudo as contém em maior quantidade, nem offerece tão facil extracção como o pinheiro.
A rezina, sendo um dos chamados succos proprios das arvores, apresenta-se ou isolada exteriormente, vertendo dos troncos, ou interiormente, adherente ás fibras lenhosas, principalmente nos nós e raizes. Para chamar a um determinado ponto local este liquido, a fim de se poder facilmente colher, empregam-se varios meios, que passamos a descrever.
Methodos adoptados para obter a rezina dos pinheiros.
Para a extracção da rezina liquida dos pinheiros, em quanto elles vegetam, são tres os methodos empregados por varias nações, especialmente pelos povos do Norte.
O primeiro methodo consiste em tirar levemente, com um machado ou outro instrumento cortante, uma porção de casca no tronco do pinheiro, logo acima do pé ou proximo á raiz: faz-se depois um entalhe na parte lenhosa, que tenha menos de duas pollegadas de profundidade, seis a sete d’altura, e tres de largo. Em toda a superficie deste entalhe brevemente começa a sahir o liquido rezinoso, que correrá para uma pequena cova, que préviamente se deve ter preparado por baixo e no chão, bem batida por dentro, a fim de não deixar sahir a rezina; e daqui se passa com colheres proprias para baldes que se conduzem a tinas ou outros recepientes maiores. Esta ferida, que deve ser feita com um instrumento bem afiado, e nunca profunda, nem de maneira que dilacere o lenho, (aliàs cessaria a vegetação da arvore por esta parte, e não daria rezina,) renova-se amiudadamente para que não deixe de correr sempre a rezina, o que acontece facilmente solidificando-se esta, e formando em toda a superficie do entalhe uma crusta, que impede totalmente a sahida do liquido rezinoso. Em cada anno se faz novo entalhe por cima do anterior, e quando estes chegam a uma altura demasiada, se principia nova ordem ao lado das primeiras.
O segundo methodo reduz-se a fazer uma ferida longitudinal na superficie do tronco, de trinta polegadas d’alto e quatro ou cinco de largo, a qual tambem se deve renovar de vez em quando: apanha-se com um ferro proprio toda a rezina existente nesta extensão, e se vai deitando n’um balde conduzido pela pessoa encarregada deste trabalho, que, em elle estando cheio, o vasa em tinas convenientemente collocadas. Nalguns paizes ha homens tão adestrados neste serviço, que tratam de mais de 1.000 arvores por dia.
No terceiro methodo pratica-se do seguinte modo: abre-se com um trado um canal até á medulla da arvore, e introduz-se-lhe um canudo, a fim de por ele escorrer a rezina para celhas postas no chão, nas quaes se colhe esta todos os dias: quando estes furos já não deitam rezina, se tapam com uns tacos de madeira, e passados 15 dias se tornam a abrir; o que produz uma sahida de liquido mais abundante.
Este ultimo methodo é muito usado nas mattas dos pinheiros larizes em França, dos quaes se tira a chamada terebenthina de Veneza, preferida ás outras no mercado pelas suas propriedades, com especialidade na medicina. A rezina obtida por estes tres processos, costuma-se cozer a fogo lento em grandes caldeiras, mechendo-a continuadamente; e filtrada depois por palhas compridas, como as do centeio, para a limpar d’algumas impurezas; dá um pez secco e louro, ou colophonia; destillada por um alambique dá a melhor agua raz, e a mesma colophonia fica em residuo.
Tadavia, sahindo esta rezina das arvores separada da seiba, não involve agua raz suficiente para produzir um pez liquido como o que chamamos alcatrão. Para este se alcançar, é necessario empregar a adustão da acha em fórnos apropria dos, que adiante descreveremos.
O nosso pinheiro maritimo, contendo uma rezina menos liquida que a das differentes especies dos pinheiros do Norte, presta-se por isso com mais difficuldade á sua extracção pelos methodos anteriormente apontados: assim é mais conveniente empregar a sua acha do que a rezina tirada separadamente; mesmo por causa do alcatrão.
Para obter esta acha em dadas partes da arvore, tambem ha dois meios artificiaes, a que chamam rechêga.
1.º Faz-se uma ferida longitudinal na superficie do tronco do pinheiro, não muito acima do seu pé, que tenha de comprimento cinco palmos e de largura oito a dez polegadas; em todo este ambito começa então a madeira a entear, e passados tres ou quatro annos se escava toda a porção enteada do lenho. Esta acha é ordinariamente a mais rica em rezina; e as experiencias feitas no pinhal de Leiria mostraram que se podiam tirar 20 a 30 arrateis d’acha a cada pinheiro no fim de cada periodo de quatro annos. Para ter a acha todos os annos por este modo se deveriam ferir em cada anno do primeiro periodo tantos pinheiros quantos fossem necessarios para um determinado fabrico d’alcatrão. D’então por diante não haveria mais do que ir cortando a acha naquelles pinheiros que concluissem o período. Os pinheiros para este fim escolhidos devem ter cinco palmos para cima de circumferencia no tronco, e a experiencia mostra quaes são os mais susceptiveis de crear acha, já pela qualidade do terreno, já por terem a casca mais delgada e liza, etc. A ferida deve ser feita com um instrumento bem cortante, e nunca ofenderá o borne com golpe transversal; porque, interceptando este a passagem da seiva ascendente e descendente, cessa por isso de vegetar a porção do tronco assim interceptada, seccando a madeira mais proxima, e até apodrecendo depois por causa da chuva. No pinhal de Leiria se feriram em 1807 mais de 100.000 pinheiros para este fim; porém em consequencia de serem a maior parte destes pinheiros já muito velhos e podres, ou talvez por algum motivo que ignoramos, ficaram muitos sem produzir acha, como hoje se observa; nem se olhou mais para este meio de ter a acha. Todavia este processo está muito em uso n’outros paizes, e é de summa necessidade em todas as mattas que não abundarem em tantos pinheiros podres e cardidos, como tem o nosso pinhal de Leiria, nos quaes em algumas partes se lhes encontra a acha. Estas feridas devem ter logar na parte do tronco mais exposta aos raios do sol; porque, influindo o calor consideravelmente no desenvolvimento da seiba e outros liquidos, é por toda esta parte do tronco que ella circula mais; e escolhe-se para as abrir o tempo da primavera, visto começar então a ceiba a girar, e sahir de certo lethargo que lhe suscita o inverno, acudindo com mais promptidão áquelle logar da ferida.
A madeira destes pinheiros, segundo dizem pessoas experientes, não sofre em qualidade, quando seja preciso aproveital-a para construcção; e até querem alguns que os pinheiros por este meio fiquem isentos de certas molestias que os costumam atacar; com tudo, havendo receio, têm muitas outras applicações; e mesmo, se elles hão de apodrecer na matta sem proveito algum, ao menos tire-se-lhes este; além de que os cardidos tambem criam rechêga.
O 2.º methodo, que está actualmente em pratica no pinhal de Leiria, é deixar na terra até á altura de cinco palmos todos os troncos dos pinheiros que se cortam, e que se presume terem communicação pelas raizes com outros que ainda vegetem, conhecendo-se muitas vezes visivelmente esta communicação naquelles pinheiros que sahem com duas ou mais hastes da terra. Então a ceiba ascendente, tendendo sempre a subir no tronco cortado, chega até á sua extremidade, e ali se vai acumulando e formando a rezina em camadas horizontaes. No fim de tres ou quatro annos póde estar enteado um palmo deste tronco; o que produzirá acha muito rica.
Este meio porém d’obter a acha falha muitas vezes, por não se darem nos troncos cortados as circumstancias exigidas, e que acima apontámos. No entanto o primeiro methodo das feridas longitudinaes é quasi infallivel, e com ele se póde contar para um determinado consumo de alcatrão. — Em co sequencia dos poucos meios pecuniarios de que póde dispor a Administração Geral das Mattas para este objecto, tem sido sufficiente até agora a acha formada naturalmente, e que se encontra nos pinheiros já velhos e cardidos, e naquelles sãos que são de natureza de a crearem sem artificio algum; mas este recurso deve sofrer grande diminuição, e não será suficiente, logo que se limpe o pinhal de tanto pinheiro podre que nelle existe em prejuizo da reproducção da especie.
VIII.
Colheita da acha, e pratica actualmente seguida no pinhal de Leiria.
Uma das circumstancias que mais concorre para a bondade do alcatrão e outros productos rezinosos, é certamente o estado em que deve estar a acha quando entra no forno. Introduzindo-se esta molhada, acha-se no lenho a rezina conjunctamente com a agoa, e esta vai embaraçar e demorar a combustão, consumindo-se muita parte oleosa, e deixando de se fazer muitas vezes a devida extracção, por não attenderem a esta circumstancia os Pegueiros, empregando sempre o mesmo tempo e gráo de calorico. Assim a época mais vantajosa para a colheita da acha será de Março a Setembro, tanto por haver na arvore mais succos proprios, como porque alguma agoa que o lenho encerre, depressa se evaporará em consequencia da temperatura então quente do ar. No caso porém que saya mais barato o obtel-a d’inverno, então se deverá empilhar em telheiros para ali soffrer a conveniente exsicação, devendo estar exposta por algum tempo ao ar livre.
Muito irregular e despendiosa era antigamente a colheita da acha no pinhal de Leiria. Formavam-se numerosas companhias de Pegueiros que, levando comsigo um capataz, corriam todo o pinhal, e faziam a acha onde o acaso lha deparava: esta acha ficava em porções espalhada pelo pinhal; e a Administração pagava a estes homens, e depois a carreiros para a conduzirem á fabrica do alcatrão. Desta pratica se seguiam muitos abusos e desperdicios; quando os Pegueiros recebiam jornal, consumia-se muito tempo na pesquiza da acha, e forçosamente devia esta sahir muito cara: quando se lhes pagava por volume ou estima, como estas avaliações eram feitas pelos capatazes lá por dentro do pinhal, sem mais alguma fiscalisação, mui facil era então ou o erro e suborno, ou o seu extravio e pouco apuro na qualidade. Deve-se ao Sr. Manoel Affonso da Costa Barros, nomeado em 1807 Director das fabricas rezinosas dos pinhaes de Leiria, e hoje Inspector da 1.ª Divisão destes pinhaes, notaveis melhoramentos, tanto neste objecto, como na manufactura do alcatrão e outros productos que pela primeira vez alli se extrahiram da acha e rezina; tendo ido á Universidade de Coimbra apresentar os seus ensaios, que foram alli analysados e approvados em 1807 pelos Doutores Lentes; de chimica, Thomé Rodrigues Sobral; de mineralogia, José Bonifacio d’Andrada e Silva; e de botanica. Antonio José das Neves.
O methodo actualmente adoptado na fabrica da Marinha é sem duvida o mais facil e economico: por uma arroba d’acha posta na fabrica paga a Administração de 20 a 30 réis, conforme a sua qualidade e distancia d’onde vem. Como a acha que alli se gasta, desde a época da ultima queimada de 1824, é tirada quasi toda de pinheiros podres e cardidos, os carreiros, quando vão ao pinhal á lenha, principalmente os da fabrica dos vidros, trazem juntamente toda a acha que encontram, e a depositam junto ás casas dos Guardas do pinhal, onde ha ordem expressa para não a deixarem sahir. Depois, em havendo porção que faça carrada, a vão vender á fabrica, levando uma guia dos competentes Guardas.
IX.
Estado dos productos rezinosos em Portugal.
Ainda que os antigos conhecessem varios processos de fazer alcatrão, como já dissemos a pag. 325, tratando das rezinas, com tudo não temos noticia, nem consta na Administração dos pinhaes de Leiria, que alli, ou em parte alguma de Portugal, se fizesse esta substancia antes de 1790; limitando-se ao pez crú, chamado breu, e ao pez cozido, denominado pixe. Até esta época era o alcatrão importado todo do estrangeiro; não se fazendo entre nós talvez por não ser o nosso pinheiro maritimo da mesma especie daquelles de que lá fóra o extrahiam; e foi, como já dissemos, durante o Ministerio de Martinho de Mello, que se fizeram ensaios mais ou menos felizes a este respeito, até se estabelecerem os fornos chamados raguzanos, dirigidos por um mestre que se mandou vir de Raguza, os quaes forneceram d’ahi por diante abundante quantidade d’alcatrão. Estes fornos foram montados na fabrica da Marinha Grande, pertencente á Administração Geral das Mattas, onde existem varios outros, que todos adiante descreveremos. Fóra desta fabrica em parte nenhuma do reino se tem feito alcatrão, sendo provavelmente uma das causas principaes a pouca força que têm os pinhaes particulares para crearem acha propria para este fim. Todavia nas provincias, principalmente na do Alemtéjo, se faz muito pez a que chamam pixe, empregando-se neste trabalho quasi exclusivamente varios habitantes da Vieira, que denominam Pegueiros; e que dalli sahem todos os annos. O processo porém de que se servem, é tão grosseiro, que os proprietarios dos pinhaes pouco interesse disso tiram; quando aliàs podiam obter productos valiosos. O methodo que elles praticam, é o seguinte:
Escolhem uma pequena elevação de terreno ou encosta, e no seu declive fazem uma cova de 7 palmos de fundo e 4 de largo, pouco mais ou menos: amassam uma pouca de terra com barro, e com este e alguma pedra miuda construem as paredes do forno, dando-lhe uma configuração similhante á dos fórnos de pez (Fig. 9 da estampa 2.ª). No fundo abrem um canal com inclinação para uma pequena cova inferior ao lado do forno, na qual lhe fazem tambem do mesmo modo as paredes interiores: rebocam depois com barro bem amassado todas estas paredes interiormente, e deixando-as seccar um pouco, as cozem com fogo de matto, que lhe introduzem. Prompto assim o forno e a caldeira, ajuntam os nós, raizes, e mais madeira rezinosa dos pinheiros, principalmente mansos; e, partindo-a em pequenos pedaços, enchem com ela o forno; communicando-lhe o fogo superiormente e tapando, mas não de todo, a boca por causa do ar, o deixam arder até ao fim. O pez corre então pelo canal inferior para a outra cova ou caldeira, que deve estar bem tapada durante a combustão. Tendo assim reunido na caldeira todo o producto rezinoso, a destapam, e lhe botam fogo dentro: quando julgam ter o liquido ardido suficientemente, mechendo-o sempre com um páo, experimentam um bocado em agoa fria; cuja prova, sahindo boa, apagam logo o fogo, abafando-o; feito o que, deitam, com colheres proprias, o pez em pequenas covas, que antecipadamente têm promptas no chão: frio o pez, o tiram destas covas em fórma de pães, e assim é vendido geralmente no mercado.
Desta maneira o pez vem cheio de terra e outras impurezas, mal caldeado, e perde-se uma grande parte, tanto nestes desperdicios, como consumida pelo fogo; além da agoa raz que podia fornecer.
X.
Descripção dos fornos d’alcatrão e pez, existentes na fabrica pertencente á Administração Geral das Mattas, estabelecida junto á Marinha Grande, e meio pelo qual se obtêem os productos rezinosos.
PRIMEIROS.
Fornos raguzanos.
Os fornos que nesta fabrica mais trabalharam, foram os chamados raguzanos: o alcatrão que delles se colhia, era sem duvida excelente: porém seu amanho era tão penoso, que foi forçoso pôl-os de parte, por haverem outros que suppriram sua falta, sem estarem sujeitos a taes inconvenientes. No entanto estes fornos, pelos simples meios empregados na sua construcção, estão ao alcance de todos, podendo-se estabelecer com facilidade junto a qualquer matta. A estampa 2ª, fig. 1.ª até 7.ª, apresenta todos os dados e dimensões para a sua execução, servindo-se da escala junta, que vai graduada em palmos
Para a colocação destes fornos exigem-se duas condições essenciaes; a saber:
- ª Um terreno elevado, e com alguma queda d’um lado, ou propriamente encosta.
- ª Agoa perenne nas suas proximidades.
Dadas estas circumstancias, fazem-se as competentes excavações, dentro das quaes, antes de principiar o forno, se fará algum alicerce d’alvenaria na base, como mostram as fig. 2.ª e 3.ª, para não abaterem depois as paredes com o grande peso da pilha. Construido o forno todo d’alvenaria, menos o fundo e bordas, que devem ser de tijolo; coloca-se a calha (a fig. 3.ª), que deve tambem ter de tijolo os dois primeiros palmos junto ao fundo do forno, para se não queimar, sendo o resto de madeira, bem como o recipiente (b) do alcatrão; pois os acidos desenvolvidos durante a destilação atacam e gastam fortemente tanto a pedra, como o ferro e outros metaes. Feito tudo isto, se deixa enxugar o forno, e então se principia a carregar ou enformar pela maneira seguinte: Abaixo do nivel da boca do forno um palmo, se porão (fig.2.ª) barrotes atravessados com intervallo de meio palmo, formando uma especie de grelhas: por cima destas grelhas se deitará uma camada de seixos lizos (de tamanho tal que não cayam pelos intervallos das grelhas), que encherão toda a boca do forno até estarem ao nivel do terreno superior: começa-se depois a empilhar a acha, que deve ter tres palmos por menos de comprido, e duas polegadas de grossura; para se fazer esta pilha principia-se no centro da boca do forno com um feixe a prumo, e se vai acompanhando de roda, com certa inclinação para dentro da parte superior, até dizer com toda a circumferencia da boca do forno: repetem-se do mesmo modo as outras camadas, sempre com alguma inclinação para dentro da parte superior até fechar, como mostra a fig. 2.ª. Na altura de nove palmos para cima até arrematar a pilha, se póde meter acha mais miuda, ficando a altura total da pilha com quatorze a quinze palmos.
Concluida a pilha da acha, que deve ficar uniformemente cheia por dentro, sem grandes intervallos, e bem acabada por fóra, se passa á sua cobertura ou camiza, assim chamada pelos da arte: para isto cobre-se primeiro a pilha com uma camada de matto⁽⁹⁾ de espessura d’um palmo pouco mais ou menos, posto todo por igual, e com as raizes para cima e encostadas á pilha. Começa-se depois a cobrir com terra toda a pilha desde a sua base, da maneira seguinte: — Tendo préviamente preparado esta terra, amassando-a com um pouco de barro, sendo este em tal quantidade, que a argamassa resultante não rache com o calor; principia-se esta capa de terra ou abobada, em roda da boca do forno na largura de tres palmos; alguns homens em cima a vão calcando com os pés, e chamando-a para dentro com ancinhos devendo concorrer em roda do forno agoa necessaria, vindo conduzida para ali por um cano (c fig. 1.ª) metido na parede, e dalli cahe por meio de aberturas feitas em frente de cada forno, n’umas tinas (d) collocadas por baixo, as quaes, transbordando, fornecem a agoa precisa para este trabalho. Quando os ancinhos já não podem trabalhar, lança-se mão de pás para deitar a terra para cima até ao vertice. Esta capa exterior de terra, como mostra a fig. 2.ª, deve ser feita com muita igualdade em roda da pilha, indo sua espessura a diminuir para cima até fechar, ficando com a superficie exterior bem liza.
⁽⁹⁾ O matto mais empregado, por ser mais maneavel, é um a que chamam marganiça.
Acabada desta maneira a coberta, applica-se no vertice da pilha, a que chamam esponte, uma ferraça ou rodella de ferro (fig. 4.ª), que ficará em contacto com a acha, e por meio d’um furo, que deve haver no centro, se introduz então o fogo; e começará assim a pilha a arder interiormente.
Quando se conhecer ter ardido mais d’um palmo d’altura, se faz nesta distancia uma secção a que chamam banco, e se applica outra ferraça (fig. 5). Tendo ardido mais dois palmos em altura, se faz outra secção a que chamam córte rente, e se applica tambem outra ferraça (fig. 6). Finalmente ardendo mais cinco palmos em altura tem logar a ultima secção, a que chamam desenforme, e na abertura da qual se applica a grande ferraça (fig. 7). Advertindo, que antes de colocar estas ferraças, se limpa a pilha de todo o carvão existente.
Estando concluida a combustão de toda a acha do forno, se taparão os buracos da ultima ferraça com pedras, e se cobrirá toda com terra humedecida. Logo que se julgue estar frio o forno, se desmancha a pilha, e tira todo o carvão, bem como se destapa a caldeira inferior ou dorna (a fig. 3.ª) que encerrará todo o alcatrão que correu da acha durante a sua combustão, tempo em que esta caldeira deve estar muito bem tapada e coberta com terra humedecida.
Haviam dezeseis destes fornos na fabrica da Marinha Grande; e agora ainda alli existem dez: cada um levava de 220 a 250 arrobas d’acha, que precisava de cinco a seis dias para arder, e de quatro a cinco homens para o seu amanho. Seu producto era
- Em alcatrão, 24 a 28 arrobas ou 10 a 12 por cento.
- Em agoa russa, 3 almudes.
- Em carvão, 12 fangas.
A grande difficuldade nestes fornos raguzanos consiste em fazer arder igualmente a acha; pois o vento, sendo forte, chama a combustão toda para um lado. Para evitar este inconveniente, ha uns varões de ferro aguçados na ponta, a que dão o nome d’agulhas, e que servem para abrir alguns furos na abobada, afim de chamar o fogo para onde elles se praticam.
Todo o processo empregado nestes fornos, até se obter o alcatrão, tendo que se renovar em cada fornada, torna-se mui trabalhoso; e não póde ter logar com chuva ou demasiado vento. Assim, posto que elles sejam uteis, pela facilidade dos meios empregados na sua construcção, para se estabelecerem temporariamente junto a qualquer matta, todavia para uma manufactura d’alcatrão constante e permanente, como deve conservar a fabrica da Marinha grande, devem-se preferir os fornos cylindricos que alli existem; mesmo por serem mais productivos, como se verá.
SEGUNDOS.
Fornos cylindricos.
De todos os fornos que se têm imaginado para o extracto do alcatrão são estes cylindricos os mais perfeitos, mesmo por que se obtêm deles certas substancias que nos outros se volatilisavam em gazes, ou se consumiam pelo fôgo que nelles ardia interiormente. Sua invenção é moderna, e na fabrica da Marinha grande data o seu uso de 1822. Os que actualmente existem alli, foram montados em 1838 durante a administração do Coronel Varnhagen que se esmerou na sua construcção. São de dois destes ultimos que tirámos as dimensões que apresentamos na estampa 3ª, cujas figuras passamos já a explicar.
- A fig. 11.ª é uma secção horizontal feita no alicerce, passando pela linha AB da fig. 17.ª.
- A fig. 12.ª é a vista superior das bocas dos cylindros com a projecção ao lado da chaminé, subindo-se a este plano por meio d’uma rampa ou escada supplementar de madeira.
- A fig. 13.ª é a tampa de cada cylindro.
- A fig. 14.ª são as grélhas que assentam em duas metades no fundo do cylindro, e por onde correm os productos rezinosos.
- A fig. 15.ª é uma secção longitudinal feita verticalmente na calha que existe ao lado dos fundos dos cylindros, por onde correm os productos para a dorna (d).
- A fig. 16.ª é o plano d’elevação do lado onde existem as bocas das fornalhas.
- A fig. 17.ª representa o córte vertical feito na direcção AB e A/B das fig. 11.ª e 12.ª.
- A fig. 18.ª é o plano d’elevação do lado da platafórma.
- E a fig. 19.° oferece finalmente o córte vertical feito na direcção CD e C’D’ das fig. 11.ª e 12.ª.
Cada um destes fornos compõe-se d’um cylindro de ferro, fig. 17.ª e 19.ª, dentro do qual se mette a acha com as hastes verticaes, dando-se a estas tres ou quatro palmos de comprimento e duas pollegadas de grossura pouco mais ou me nos. Posta a primeira camada no fundo do cylindro, apertada com um maço, mas não demasiadamente a fim de poder correr o alcatrão, se sobrepõe segunda, terceira, etc., até á boca; estando assim cheio o cylindro, se fecha hermeticamente com uma tampa de ferro, fig. 13.ª, barrando as juntas com uma argamassa de grêda e cal, ou de algum barro conveniente. Por baixo de cada cylindro ha uma fornalha, (f) fig. 16.ª e 19.ª, onde se applica o fogo, e este vai circumdar todo o cylindro até á boca, passando pelas recamaras r, r”, r”, etc., fig. 17.ª e 19.ª, construidas em roda. No fundo de cada cylindro ha uma grélha de ferro, fig. 14.ª; acabando depois o forno em fórma de funil. A acha, em consequencia do intenso gráo de calor, que exteriormente gira em roda do cylindro, vai largando todos os succos rezinosos, até ficar reduzida a carvão. Estes succos, atravessando as grélhas, se precipitam no fundo afunilado do cylindro; e d’alli, correndo por uma calha de madeira, (m) fig. 15.ª e 19.ª, vai entrar numa dorna, (d) fig. 15.ª, enterrada conveniente, e que deve estar bem tapada, com terra humedecida por cima, durante toda a distilação. Estando esta concluida, o que leva ordinariamente dois dias, fecha-se a boca da fornalha, (f) fig. 16.ª. Destapa-se então a dorna, que encerrará primeiro uma agoa quasi pura, depois o alcatrão, e por baixo de tudo agoa russa ou acido pyrolenhoso, e d’alli se vai tirando o alcatrão para barrís. Tira-se tambem todo o carvão existente dentro de cada cylindro, e ficam estes desde então aptos para outra fornada.
Na fabrica da Marinha Grande são 10 os cylindros, todos das dimensões que apresentâmos na estampa 3.ª Cada um destes fornos leva 60 arrobas d’acha, ou 600 arrobas para os 10; precisam de quatro dias e tres noites para arder, e produzem:
- Alcatrão: 12 a 13 barrís de 8 arrobas cada um, ou, termo medio, 100 arrobas d’alcatrão; isto é, 17 por cento a respeito do pezo da acha.
- Acidopyrolenhoso: 12 almudes.
- Carvão: 40 fangas.
TERCEIROS.
Fornos de pez.
Estes fornos, fig, 9.ª e 10.ª, estampa 2.ª, têm uma figura proximamente parabolica; e parecem-se com uma talha enterrada: são construidos todos de tijôlo, e antes de se principiarem a construir, sempre se lhes submette algum alicerce d’alvenaria. Assentado o fundo, se prepara uma taboa ou molde, que tenha por um lado a curvatura interior do forno, e que seja igual a meia secção longitudinal do plano que se imaginar passar verticalmente pelo eixo do forno. Este molde se fará girar em roda do eixo, e assim se irão pondo os tijolos até á boca. Junto ao fundo se deve abrir um canal, (c) fig. 10.ª, com alguma inclinação para o recipiente (r), que deve ser de madeira.
Construido assim o forno, aproveita-se toda a acha miuda e nós, e se vai metendo dentro do forno deitada com alguma inclinação, e em fórma de raios. Cheio o forno se lhe lança fogo por cima, e se tapa com uma ferraça, que terá alguns buracos para entrar o ar, e entreter a combustão. Concluida esta, se tapa a boca do forno com a mesma ferraça, pondo-lhe pedras nos buracos e terra humedecida por cima; o que se fará tambem á boca do recipiente antes de se ter deitado fogo á acha. Logo que esteja frio o forno, se destapa para tirar o carvão que dentro existe, fazendo-se outro tanto ao recipiente, que conterá o pez extrahido, a que chamam breu.
Um forno com as dimensões das fig. 9.ª e 10.ª leva 40 a 45 arrobas d’acha, e precisa dezoito horas para arder; produz:
- Pez ou breu: 4 ; arrobas ou 12 por cento.
- Carvão: 1 fanga.
XI.
Modo de obter o pez cozido ou pixe.
Ainda que o pixe se possa fazer tanto do alcatrão como do pez cru ou breu, com tudo na fabrica da Marinha Grande se emprega unicamente este ultimo, por ser o alcatrão mais procurado, e levar mais tempo a fazer, sahindo por isso mais despendioso o processo.
Principia-se por deitar o breu dentro d’uma grande caldeira, fig.ª 21.ª e 23ª, não se enchendo de todo esta por causa dos vapores e diversos gazes que se desenvolvem na fervura. Tapa-se esta com um capitel d’alambique no caso de se querer aproveitar a agoa raz, ou aliàs se deixa destapada, mas neste caso em logar de caldeira é melhor usar-se um tacho proprio. Applica-se o fogo por uma fornalha inferior (f), fig.ª 21.ª, 22.ª e 23.ª, e quando se julga ter cozido suficientemente (estando tapada a caldeira) se abre uma torneira (s), fig. 23.ª, existente no extremo d’um cano que sahe do fundo, a fim de tirar uma porção de pez e experimental-o em agoa fria, para se conhecer se está na consistencia necessaria; estando a caldeira destapada, então se experimenta pela boca com uma colher de ferro.
Logo que está cozido o pez, se tapa a boca da fornalha, e se vão enchendo delle, em quanto está quente, os barrís ou outras vasilhas.
A caldeira existente na dita fabrica leva 56 arrobas de breu; e produz:
- Pez cozido: 5 barrís ou 40 @, isto é, anda a perda por 30 por cento.
- Agoa raz impura: 1 almude.
XII.
Modo de obter a agoa raz.
Extrahe-se a agoa raz, tanto da rezina liquida que se tira directamente dos pinheiros, como do alcatrão e pez, por meio da evaporação. Para esta se obter, basta applicar um alambique á caldeira do pez, como se vê na fig.21.ª. Amontoando-se então os vapores, em consequencia de effervescencia do liquido rezinoso, dentro do capitel da caldeira, vão passando atravéz do condensador cylindrico (ll’) mettido dentro d’uma dorna (d) com agoa; e sahem em estado liquido por um cano (c) inferiormente colocado e dirigido para uma selha (b). É este liquido a agoa raz, que se purifica levando-a outra ou mais vezes á caldeira.
As 4 figuras que apresentâmos na estampa 3.ª acompanhadas da competente escala, mostram a maneira como se executa esta distillacão; podendo-se facilmente construir por ellas um similhante aparelho. A fig. 20.ª é a secção horisontal feita no aparelho junto á boca da caldeira. A fig. 21.ª é o córte vertical que passa pelo centro de todo o aparelho na direcção das bocas da fornalha (f) e cinzeiro (g). A fig. 22.ª é a face do aparelho onde existem estas mesmas bocas, e chaminé. Finalmente, a fig. 23.ª é o córte vertical, passando pelo centro da caldeira perpendicularmente ao da fig. 21.ª
A agoa raz que se extrahe do pez na fabrica da Marinha Grande, não se costuma purificar, e unicamente se aproveita misturando-a com o breu, de cuja mistura resulta alcatrão; porém sempre inferior ao que se distilla directamente dos fórnos.
Esta agoa raz, ainda que da primeira vez saia córada e impura, com tudo tornando-a a distillar, se obtem tão boa como, a que se vende no mercado: em 1821 se purificou uma barrica della com 124 arrateis liquidos; que, remettida para Lisboa, se vendeu a 140 r.s o arratel.
XIII.
Calculo dos preços por que sahe à Administração Geral das Mattas cada barril de productos rezinosos, praticando os processos que ficam indicados.
1.º
Barril de alcatrão, pelos fornos ragusanos.
2.º
O mesmo empregando os fornos cylindricos.
3.º
Barril de pez cozido ou pixe.
N. B. Sahem mais caros estes barís de pixe, porque se lhes não desconta a agoa raz que se devia purificar.
Importe das conducções.
A conducção por terra, dos barris d’alcatrão e pez, até aos portos d’embarque sahe, para S. Martinho a 45 r.s por @, ou (devendo ter cada barril 10 1/2 @ por causa de 2 1/2 @ de tara) por barril a 475 r.s.
Para a Vieira fica a 20 r.s por @, ou a 210 r.s cada barril.
Indicação dos Mappas que acompanham a Memoria.
Posto que da simples inspecçção dos mesmos mappas se deva facilmente concluir o que pertendem mostrar, julgamos todavia dever por ultimo fazer sobre os mesmos esta indicação, a qual, juntamente com elles, servirá de conclusão a esta Memoria.
Os de n.° 1 e 2 mostram o valor das diferentes peças de madeira.
O n.º 3 é o que no titulo do mesmo claramente vai indicado.
O n.° 4 indica as remessas de productos rezinosos que desde 1805 têm sido dirigidas para o Arsenal de Marinha de Lisboa, apresentando com tudo algumas lacunas devidas a circumstancias que no mesmo mappa se referem.
O mappa n.° 5, contendo a receita e despeza da fabrica dos productos rezinosos no anno de 1807, bem claro mostra o interesse que se póde tirar com a manufactura destes productos; não nos esquecendo por ultimo satisfazer a curiosidade publica apresentando o Orçamento Geral das mattas e pinhaes a cargo do Ministerio da Marinha para o anno corrente de 1843 a 1844, o qual occupa as ultimas paginas de todos os mappas que acompanham esta memoria.
Transcrição: PS, CF.